27 – Um capiau em Paris – 14 crônicas

Superação do cio biológico: A história humana (individual e coletiva) é determinada pela superação do cio biológico da fêmea em busca do cio psicobiofísico.          A Sabedoria Popular sempre considerou a dimensão da Energia Material Humana na sua visão de mundo.          O afluxo sanguíneo é que gera a potência genital, seja no homem, seja na mulher.          As doenças do corpo e da mente são alimentadas pela energia material humana mortal/negativa.          Fusão genital é o modelo de relação sexual onde homem e mulher vivenciam sua potência genital.          O modelo de vida (individual ou coletiva) da auto-regulação pressupõe a consciência e o enfrentamento da realidade do pecado.          A noção de pecado originária da Sabedoria Popular é porque essa sempre considerou a dimensão da energia material humana na sua visão de mundo.          Para a Sabedoria Popular pecado é a transgressão de alguma lei que rege a natureza humana.          Potente é quem, mais do que em suas capacidades, tem consciência de seus limites e os respeita, buscando sua superação.          A vivência da virtude nos faz potente e a vivência do pecado nos deixa impotente para amar e gozar a vida.          Não existe pessoa desorganizada: uns se organizam para ter paz, outros para ter aflição.
26 – Vivegetante
02/04/2020
28 – Racionalidade da Sabedoria Popular
02/04/2020

Crônicas de um serrano capiau vivendo dois anos em Paris e mostrando que a verdadeira revolução está na superação deste modelo civilizatório calcado num racionalismo que nega a dimensão da energia na matéria.

Introdução




            É inquestionável a importância que os meus dois anos de permanência 
na França tiveram na evolução da minha visão de mundo. Essa vivência me permitiu
destruir vários mitos.

            Seja à esquerda, seja à direita, sempre nos acenaram os chamados
países desenvolvidos como modelo no nosso processo de evolução social. E em 
especial a França, por sua hegemonia cultural na evolução histórica das nações 
ocidentais, notadamente nos séculos XIX e XX.

            Talvez tenha sido esse o principal mito a ruir para mim. É que me foi
ficando cada vez mais claro que a principal barreira ao desenvolvimento humano 
não se localiza nem no nível do social, nem do cultural. É, sim, antes de tudo, 
uma questão de modelo civilizatório. E se assim é, quanto mais avançada for uma 
determinada sociedade dentro do atual modelo de civilização, tanto menos ela deve
ser tomada como exemplo.

            Esse é um modelo de civilização calcado na supervalorização do 
racional em detrimento do emocional, produzindo, pois, um modelo de conhecimento
que abarca apenas uma parte da realidade humana: a racionalidade mecânica, que
despreza a dimensão energética. E quando a gente sente esse tipo de racionalidade
sendo vivenciada em toda sua intensidade por um povo, começamos a compreender
fenômenos tais como o fascismo e o nazismo.

            Os casos que vou contar são reais, apesar de aqui e ali eu ter 
alterado os nomes de alguns personagens e, para o propósito deste trabalho, 
ter interferido na seqüência de algumas circunstâncias. Nada disso, porém, 
elimina a veracidade dos fatos, que guardei comigo até hoje talvez porque não
entendesse a dimensão de sua profundidade.

            Hoje, porém, ao redescobrir na prática da sabedoria popular a 
proposta de um modelo de racionalidade mais consuetâneo com a realidade humana, 
sinto-me motivado a publicá-los.

            Que sua publicação esfrie os ânimos daqueles que persistem num modelo
de desenvolvimento social moldado nas chamadas sociedades desenvolvidas. Mas,
principalmente, que seja um estímulo aos movimentos que buscam outras alternativas
civilizatórias, em especial aqueles que se pautam na sabedoria popular, única 
guardiã da racionalidade mágica.

 

GUERRA AOS ÁRABES

 

Estamos no ano de 2002 assistindo a uma cruzada do presidente dos Estados Unidos para se iniciar uma nova guerra contra o Iraque.

Pelo que se pode saber à distância, não morro de amores pelo Saddam Hussein, ditador sanguinário e de vocação expansionista. Criado pelos Estados Unidos para fazer frente aos Aiatolás do Irã (antiga ilha de amizade com o Ocidente liderada por Reza Parlevi), Saddam Russein é hoje o inimigo nº 1 do Ocidente.

O que a gente não tem condições de saber com convicção é se ele é inimigo porque estaria produzindo armas de destruição em massa ou se porque seu país detém uma das maiores reservas de petróleo do mundo.

Essa dúvida faz-me retornar a 1974, quando houve a primeira grande crise de petróleo.

A Renê trabalhava na Aliança Francesa. Muito simpática e alinhada, era casada com um engenheiro com o qual tinha um filho. Típica família classe média na França.

Um de seus sonhos era visitar o Brasil. Talvez esteja aqui a razão de nos termos tornado bastante amigos. Tão amigos que chegou a nos convidar para um jantar, coisa rara entre os franceses e sinal de muita intimidade.

No dia aprazado, nos deparamos com uma Renê totalmente assustada ao nos abrir a porta. Afinal, o que estávamos fazendo ali? Na França não se usa visitar um amigo sem prévio agendamento. Ao dizer-lhe que estávamos ali para o jantar que havíamos combinado, a Renê levou a mão à cabeça, deu um suspiro e disse: Ai meu Deus, o que vou fazer? Não estava esperando vocês!

Ao se lembrar de que de fato havia nos convidado, ficou toda sem graça e se explicou por  ter perdido a sua agenda. É que os franceses têm na agenda a memória de seus compromissos. Você não encontra um que não tenha à mão um “carpen” e uma caneta. Anotam tudo. E se o “carpen” se perde, a pessoa está perdida.

Passado o mal-estar e já num ambiente de descontração e risadas, beliscamos alguns tipos de queijo regados a um bom vinho. Terminou sendo uma noite muito agradável. Talvez mais que o jantar agendado.

Era comum, ao final de seu expediente na Aliança, a gente sair para tomar um chopp. Eu adorava porque, além de sua presença ser muito agradável, tinha  oportunidade de treinar de forma relaxada o meu francês. E num desses papos de boteco, surgiu a questão da crise de petróleo.

Eu estava assustado com uma onda que começava a crescer prevendo uma guerra contra os árabes. Isso era visível na imprensa e até mesmo em conferências na Universidade. Confesso que, apesar de me considerar razoavelmente politizado para a época, não consegui entender essa bandeira da guerra. Vi que ali no papo com a Renê estava a chance de aprofundar o meu entendimento dessa questão. Por tudo que conhecia dela, a minha expectativa é que ela fosse contra essa onda.

Entretanto, de cara ela começou a argumentar não só sobre a necessidade, como também sobre a justeza de se fazer guerra aos árabes. Afinal de contas, os preços estavam subindo. A inflação estava chegando a uma taxa insuportável. E como eles iriam fazer quando chegasse o inverno e faltasse energia para o aquecimento imprescindível ao seu conforto, tanto no trabalho quanto no lar?

Com o meu francês capenga, argumentei que aquilo não era justo. Afinal, o petróleo era deles e o mercado é que ditava os preços. Ela contra-argumentou com a ação orquestrada da OPEP que estava diminuindo a produção para aumentar os preços.

Diante de minha observação de que os países capitalistas tinham a mesma conduta em relação aos seus produtos de exportação, ela ponderou que tais produtos não eram essenciais para a sobrevivência tal como acontecia com o petróleo.

Vendo que daquele mato não saía coelho, a única coisa que pude acrescentar é que nós, no Brasil, estávamos acostumados com muitas crises que nos levavam a pensar em mudança de governo, mudança de regime e até em revolução. Mas jamais em promover guerra contra seja lá contra quem for para resolver nossos problemas.

 

MENINO NA COLEIRA

 

 

Verão de 1974. Não um verão qualquer. É verão europeu, em pleno mês de julho. E eu estou em Paris.

O movimento dos cafés e dos bares se dá principalmente nas calçadas. As novidades deste novo mundo para mim, no velho mundo da humanidade, me deslumbravam, por um lado, e me chocavam, por outro.

O que mais me deslumbrava nesse momento era me ver capaz de aprender uma outra língua. A dimensão lúdica desse aprendizado chegava a me embevecer. Brincar de aprender uma língua. Essa postura me ajudou muito. Cheguei a falar bem o Francês, ao ponto de me confundirem com um  parisiense.

Mas isso foi muito depois. Por enquanto, eu brincava de engatinhar. E como apanhei!…

Dizem que os parisienses já estão mais educados com os estrangeiros. Naquele tempo, porém, se você não dissesse a palavra certa, para a coisa certa, na hora certa, você levava um toco de uma patada. E como levei patadas nas feiras livres e no comércio, em geral!…Mas até isso você absorve positivamente quando a postura é de brincar de aprender.

Era nisso que estava pensando quando me deparei com uma cena que, essa sim, jamais teria condições de absorver. Entre um gole de chopp e outro, entrevi, por cima do copo, algo que acreditei ser miragem. Descansei o copo e abri mais meus olhos, fixando-os na cena. E era pura verdade. Do lado de lá da rua, na entrada de uma pequena mercearia, uma criança dos seus seis, sete anos pulava que nem cabrito, tentando se desvencilhar da coleira que a mãe segurava. Era coleira mesmo e era a mãe mesmo! Criança é que já não sei se era.

Com meu francês capenga, tentei externar minha indignação, puxando um dedo de prosa com alguém que estava na mesa ao lado. Recebi uma lição de civilização. Em me sabendo brasileiro, criticou minha ingenuidade, tentando me provar que o gesto daquela mãe expressava um puro e profundo amor. Afinal, Paris não era Brasil e o índice de crianças que desapareciam justificava tal cuidado materno.

Tentei argumentar com a alternativa do antigo e prosaico darem-se as mãos. Mais uma vez, pelo ineditismo da cena e pela minha limitação lingüística, tive que engolir o discurso do nosso atraso. A coleira permitia à mãe ter as mãos livres para manipular suas compras, pois que ela estava amarrada aos braços.

A tarde perdeu seu encanto. O chopp tornou-se amargo. A prosa não chegou a ter nem um dedo mindinho, recolhendo-me à minha insignificância de aprendiz de uma nova língua.

Ao fazê-lo, deparei-me com a grandeza do homem que ainda existe em minha terra. Aprender aquela língua continuaria sendo para mim um desafio e uma brincadeira. Mas desafio e coisa séria seria para mim, daí em diante, desvendar o quanto de humanidade estava se esgarçando no velho mundo. E, principalmente, tentar entender como isso acontecia para que, voltando ao Brasil, tentasse impedir uma evolução que se encaminhasse para cenas como aquela, em que uma criança estava amarrada à coleira, pulando que nem cabrito.

 

 SERRA, SERRA, SERRADOR !

 

 

A história do menino na coleira me deixou muito impressionado. Daí em diante, comecei a reparar com mais acuidade o tratamento que os parisienses dispensavam a suas crianças.

De menino amarrado à coleira só presenciei mais uns dois casos. Mas a frieza e até brutalidade na relação adulto/ criança era algo bastante visível e constante. Ao ponto de eu chegar à conclusão de que os cães parisienses recebem mais carinho que suas crianças. E é verdade! É comum as pessoas pararem alguém que esteja levando um cão, acariciá-lo  e tecer comentários afetuosos com o dono. É incomum isso acontecer quando se trata de criança. E como tem cachorro em Paris! Afinal, é mais fácil adestrar um cão do que uma criança.

Essa questão tanto me encucou que, um dia, tive a petulância de assumir uma postura que hoje não sei se teria coragem de reproduzir. Foi num seminário sobre a América Latina. O conferencista quase nos levava às  lágrimas ao descrever a situação de pobreza do nosso continente e em especial a fome entre as crianças. Como eu conhecia isso  e como me doía! Mas ao sentir um ar de superioridade no conferencista que afirmava já estar essa questão superada na França, não me contive e resolvi dar meu testemunho.

Como brasileiro, confirmei o quadro por ele exposto e falei da minha esperança de um dia isso ser superado. E que essa superação, no meu entendimento, passava por um novo ordenamento econômico mundial onde a fartura de um país não se desse às custas da exploração do outro. Mas também joguei um novo ingrediente na discussão. Afirmei que as crianças francesas também padeciam de uma fome que precisava ser enfrentada. Diante de olhos estatelados e perplexos, concluí dizendo que não sabia que fome era pior: se a de pão ou de carinho  e afeto.

Como esperava, minha intervenção deu um bafafá danado. Mas era o que eu queria. Afinal, já estava cheio de ver os colonizadores darem receitas de solução para os colonizados e não via neles uma postura crítica diante dos seus próprios problemas. E isso me preocupava politicamente. Tanto que pude entender mais o fenômeno do nazismo. Afinal, a história não se faz pela ação de um líder se esse não encontra liderados à altura. E aquele ambiente de falta de calor humano, de frieza, de racionalismo e de ar de superioridade continha , no meu entender, os ingredientes básicos para qualquer processo fascista.

Mas eu era e continuo sendo um capiau do Serro. E como tal, o coração geralmente fala mais alto. Apesar de toda essa minha consciência, olha eu de novo numa outra enrascada!

Como sempre, tomei o metrô rumo à Paris VIII. Como nessa época morasse noutro extremo da cidade, atravessava Paris todinha por debaixo da terra. As poltronas do metrô são dispostas aos pares, um frente ao outro. Como eu o tomasse no início, ele estava geralmente vazio, indo se enchendo aos poucos. Lá pela quinta estação, senta-se à minha frente uma senhora dos seus quarenta anos, acompanhada de uma criança de aproximadamente dois anos. O menininho, com um barbante dependurado nos dedos, não tirava o olho de mim. E o metrô foi enchendo…

A certa altura, a criança pôs uma das pontas do barbante em minha mão, retendo a outra ponta. Ingenuamente, eu aquiesci, achando que ele queria que a gente brincasse de serrote. Por alguns segundos, sem ensaio nem qualquer acordo verbal, produzimos alguns movimentos bem sincronizados. Cheguei até a me lembrar da roça, vendo Geraldo Nazário e seu companheiro transformando uma tora de madeira em várias tábuas.

Quando dei por mim, vi-me alvo de olhos atônitos e perplexos. Afinal, o metrô já enchera e as pessoas que estavam em pé dependuravam-se sobre nós. Seus olhos faiscavam interrogações. Num gesto brusco e assustado, devolvi a ponta do barbante à criança, cruzei os braços e desviei meus olhos de seus olhinhos.

Como eu era besta! Será que não sabia onde estava? Brincando com uma criança em público, eu, um  estranho e um estrangeiro!… Aquele pessoal devia estar pensando que eu  era um  tarado. _ Você tem que se conter, Fábio! O coração aqui não pode bater asas…

Em meio a esses pensamentos, a senhora se levantou _ a próxima estação se aproximava _ e eu, com o rabo do olho, percebi que a criança se afastava tentando encontrar o meu olhar. Pior do que isso. Já na plataforma _ e o metrô ainda parado_ o garotinho me fez alguns acenos de adeus. E eu me contive na minha recém-disciplina fascista.

 

CATEDRAL DE CHARTRE

 

Acabo de ler num dos jornais paulistas uma análise de uma dessas agências americanas de classificação de risco. Para um período de transição com tantas interrogações, pois pela primeira vez o PT, capitaneado por um autêntico trabalhador, assume o governo de nosso país, o tom dessa análise é até bastante positivo. Só que de novo o analista coloca Buenos Aires como capital do Brasil.

Para quem já viveu algum tempo em um dos países centrais do capitalismo, isso não é de assustar. Geralmente, seus povos conhecem muito bem sua própria história e geografia, mas sabem muito pouco a respeito do resto do mundo. Mas sua expectativa a respeito da gente de país periférico é que estejamos bastante por dentro da realidade deles.

Certo dia, numa roda de conversa fiada _ éramos quatro brasileiros e um francês _ este nos contava alguns episódios da segunda guerra mundial. A certa altura, ele fez menção à Catedral de Chartre. Eu, na minha ingenuidade curiosa, perguntei-lhe o que era Catedral de Chartre. Espantado com minha ignorância, falou-me da repercussão que teve quando os nazistas bombardearam aquela catedral.

A reação que o francês teve à minha questão causou-me grande mal-estar. Mal-estar que se multiplicou pelo ar de espanto com que meus colegas brasileiros reagiram à minha pergunta.

Esse mal-estar, porém, fez-se acompanhar de uma certa indignação. Por que eu tinha de saber detalhes da história deles? Isso era sinal de erudição ou de subordinação? O jeito era me calar, não fazer mais perguntas e ir acompanhando o papo como se soubesse de tudo. Mas não sairia dali com aquele sapo agarrado na garganta. Logo que houvesse chance, iria introduzir algum dado da realidade brasileira para mostrar ao gringo que, em termos de ignorância da história um do outro, estávamos empatados.

Mas eu não queria atingir apenas o francês. Sentia que meus patrícios, ao darem uma de sabichões, estavam mais uma vez expressando o espírito de colonizado que em geral dominava os filhos de classe média que iam buscar as luzes da intelectualidade européia.

Não deu outra. Logo, logo apareceu a chance de eu dar o troco. Alguém levantou a questão da escravatura no Brasil, no que eu mencionei a Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Serro. Logo alguém perguntou o que era aquilo. E eu, enfático, espantei-me com a pergunta. _ Você não sabe da importância dessa igreja? Ela é a sede de uma irmandade fundada pelos escravos e que já naquela época incorporou aos seus estatutos a idéia de condenação ao racismo.

Diante da curiosidade estampada nos olhos dos meus interlocutores e com meu moral já restabelecido, pus-me a fornecer detalhes sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, assunto que dominava com ninguém daquela roda. Narrei-lhes, por exemplo, episódios carregados de magia que sempre perpassaram a história das festas de Nossa Senhora do Rosário. Como essa festa, realizada em três dias, transforma a cidade num verdadeiro palco de múltiplos cenários. Quando então lhes contei que até hoje o processo de votação para a escolha dos festeiros tem como cédulas os bagos de milho e feijão e porque tinha que ser assim na época da escravidão, danaram a me colocar questões sobre essa faceta da realidade brasileira.

É que, proibidos de se organizarem e principalmente de se reunirem, os escravos não tinham como proceder a uma eleição normal para escolha do rei, da rainha e dos demais festeiros. Assim, combinavam na surdina os locais em que seriam colocadas as cuias de votação para cada cargo, geralmente dependuradas numa árvore, onde cada um depositava o seu voto, na  medida em que não se sentia percebido pelos capatazes.

A minha sorte em ter sabido virar o jogo me deixou muito satisfeito  e com uma certa certeza de que, mesmo sem ter discutido claramente, ficou a lição da relatividade da erudição, principalmente quando essa se refere ao conhecimento de um povo sobre o outro.

 

ESPÍRITO DE COLONIZADO

 

 

Toda moeda tem duas faces. Não existe colonização sem que haja colonizador e colonizado. Essa verdade ficou bastante evidente para mim ao vivenciar e presenciar várias situações na França. Duas delas são paradigmáticas.

A primeira tem a ver com um africano chamado Sherife. Natural da Zâmbia, estava na França fazendo um doutorado para, ao voltar ao seu país, assumir o Ministério da Educação. Tínhamos o mesmo diretor de estudos do Departamento de Ciência da Educação da Universidade de Paris VIII.

Incucado com a sua convicção de candidato certo ao Ministério da Educação de seu país, comecei a indagar-lhe sobre seus costumes. Era de família nobre e, por isso, tinha aquelas marcas de arranhão na face. A quantidade de marcas expressava o grau de nobreza. Como nobre, pertencia à classe dirigente, cujos membros normalmente passavam uma temporada nos países colonizadores, preparando-se como quadros para os governos de origem.

No caso do Sherife, ele havia feito sua graduação na Inglaterra e estava se pós-graduando na França. Seu inglês era fluente. Mas seu francês era pior que o meu. Os nossos papos se davam mais com as mãos do que com a boca. Apesar de tudo, nos entendíamos muito bem. Além do mais, eu era brasileiro e conterrâneo do Pelé.

Num desses papos, o Sherife me confidenciou o seu drama. O tempo previsto para ele ficar na Europa estava se esgotando e ele não conseguia defender sua tese. Perguntei-lhe se ainda faltava muito para concluí-la. Ele me disse que ela já estava pronta. Pronta, mas em inglês, como havia combinado previamente com o seu diretor de estudos. Só que agora, esse mesmo diretor exigia que todo processo de defesa se desse em  francês, inclusive o texto.

Eu lhe falei que, se havia esse trato entre os dois, ele tinha que ser mais firme e até duro com o tal professor para que o trato fosse cumprido. Afinal de contas, ele havia assumido compromisso com o seu governo em função do combinado e agora estava se indispondo com o seu próprio país, correndo o risco de perder o seu futuro cargo. Disse-lhe que, de vez em quando,  em situações como aquela, um pouco de ignorância pode até ajudar. Que com aquele mesmo professor eu já tivera um  certo desentendimento, também por quebra de palavra, e que havia saído com ele aos gritos, após o que nossa relação voltou a ser respeitosa.

_ Afinal, Sherife, chame o homem às falas !

_ Mas Fábio, como vou questionar um grande professor, de uma grande universidade, de um grande país?

Ao que retruquei: _ Je chie en tout ça. ( Eu cago nisso tudo).

Confesso que não sei o que terminou acontecendo com o Sherife. Os nossos caminhos não mais se cruzaram. Só sei que sempre torci para que ele fosse um bom Ministro da Educação na Zâmbia.

Se a história do Sherife patenteia o espírito de colonizado de um africano, tem uma outra que deixa claro o mesmo espírito na maioria dos brasileiros que tive a chance de conhecer na França.

Para não identificá-lo, pois ele ainda está por aí, e espero que por muito tempo, vou chamá-lo de José. Capiau como eu, do interior de Minas, de uma cidade do porte da minha, tínhamos muito em comum, principalmente o fato de nos sentirmos um estranho no ninho.

Quando o encontrei, o prazo de sua bolsa estava já se esgotando e ele não conseguia ultimar a sua tese. Diante da sua aflição e estando com as minhas coisas em compasso de espera, ofereci-lhe u’a mão. Além de ajudá-lo, não posso negar o meu interesse. Seu trabalho era sobre a música popular brasileira com a qual sempre me encantei.

Qual não foi porém meu espanto ao começar a ler o que ele já havia escrito.  Como sempre, a introdução do seu trabalho já estava pronta. E foi exatamente o primeiro parágrafo dela que me assustou. Nesse, José pedia desculpas aos franceses por não ter a disciplina intelectual deles, pedindo ao mesmo tempo compreensão se, ao final e ao cabo, sua tese não estivesse à altura da intelectualidade francesa.

Por sorte do José e talvez minha também, quando li esse parágrafo a gente não estava perto. Minha vontade foi de rasgá-lo. Cuspindo marimbondo, procurei-o o mais rápido possível e fui logo dizendo na sua lata: _ Ó Zé, se ocê não rasgar essa titica, não quero nem saber de te ajudar. Ce viu que está pedindo desculpas por ser brasileiro? E além do mais, cê tá mostrando que é burro. Como é que cê pede desculpas por ser brasileiro e se propõe a fazer um trabalho sobre música popular brasileira?

Essa minha indignação motivou um longo papo. Afinal, não existe cultura melhor que a outra, nem povo melhor que o outro. Até a maneira de trabalhar, inclusiva intelectual, é dada pelas condições reais e históricas de cada povo. E isso só será julgado pelo futuro do processo histórico. Nem sempre o colonizador tem as melhores soluções e a história tem mostrado que, ao final, é ele que incorpora a cultura do colonizado.

Acho que esse papo foi uma injeção de ânimo em José. Não é à-toa que ele não estava conseguindo terminar sua tese. Escreveu uma nova introdução com um novo espírito e desembestou no trabalho, defendendo-o logo em seguida.

 

MISTURADOR DE ÁGUA

 

 

Já estávamos morando num quarto de empregada melhor _ esse se localizava num prédio moderno, não tinha os seis andares de escada para subir a pé como o outro, pois os quartos de empregada ficavam no térreo e, melhor ainda, havia um chuveiro que, apesar de ser comum a todos, aliviava-me do sofrimento dos banhos públicos onde o cheiro de morrinha era insuportável.

Apesar disso, o dia-a-dia continuava muito difícil por estarmos longe dos restaurantes universitários. O ideal seria morarmos na cidade universitária, mas para isso tínhamos que ter uma bolsa do governo francês ou do governo brasileiro.

A essas alturas, porém, distante do Brasil e sem ter-me preparado, ser-me-ia muito difícil conseguir uma bolsa do governo brasileiro a curto prazo. Foi então que a ficha caiu. Apesar de naturalizada brasileira e praticamente não ter vivido na França onde nascera, descobrimos que minha esposa teria direito a uma bolsa do governo francês.

E é aqui que entra um depoimento a que não posso me furtar. De fato, eles têm uma máquina governamental que funciona. Sem nenhuma referência ou pistolão, fizemos o requerimento citando a legislação pertinente e, em menos de sessenta dias, ela já estava recebendo a bolsa. Agora, como bolsista, ela podia pleitear uma vaga na cidade universitária. Também sem pistolão ou referência _ apenas com o requerimento e a documentação anexa _ , em pouco tempo nos mudamos para a cidade universitária.

E é aqui que as águas se misturam. Já ouvira falar do tal do choque cultural. Mas jamais podia imaginar o grau de sua intensidade. Ainda mais no meu caso, que mal me  adaptara ao ambiente de uma cidade grande como Belo Horizonte e já estava numa metrópole mundial e estrangeira. A frieza nas relações e o formalismo no comportamento era, sem sombra de dúvida, o que mais me afligia. Já sentia meus alicerces se abalando e principalmente minha segurança pessoal indo para o espaço. E foi na mistura das águas que encontrei um certo alento.

A casa para onde nos mudamos era uma construção antiga, pois foi com ela que se iniciou a cidade universitária. Aqui também os chuveiros eram comuns. O quarto devia ser um  quatro por quatro, com um pequeno anexo onde havia o vaso sanitário e a pia. Um outro elemento de conforto de que passávamos a dispor era o sistema de aquecimento. Mas de cara me deparei com um grande e aparente insolúvel problema. A pia tinha uma torneira de água quente e outra de água fria. Como a nossa mudança se dera em pleno inverno, a água fria era gelada e a quente fervia. Na realidade, não dispúnhamos de uma pia. Nos primeiros momentos, ela não passou de um objeto de decoração.

Mas capiau que é capiau não se dá por vencido. Afinal, cresci fabricando meus próprios brinquedos e até mais que isso, improvisando as ferramentas para fabricá-los. E foi nesse aprendizado de improvisação que encontrei a salvação.

Já havia reparado que os lixos em Paris são bastante pródigos. Afinal, eles já estavam bem adiantados na cultura do desperdício. Um conhecido meu já montara seu pequeno apartamento com restos do lixo, onde se incluía até uma geladeira semi-nova. Portanto, não seria em princípio difícil encontrar um toco de mangueira. E de fato não o foi. Bastou uma volta pelo quarteirão e eu já havia encontrado meu misturador. Enfiei uma ponta em cada torneira formando um arco no meio do qual produzi um pequeno orifício. Finalmente, a pia passou a ter serventia. Abria um pouco de cada torneira e a água saía morna.

Todo ato de criação é auto realizante. Estava bastante satisfeito comigo. Mas ainda me considerava dentro da linha da normalidade. Entretanto, alguns franceses que foram nos visitar assustavam-se com aquela mangueira, em princípio obstruindo a saída das águas. Perguntavam-me o que era aquilo. E qual não foi meu espanto diante da reação a minha explicação.

_ Como você é inteligente! Isto é genial!

E abriam e fechavam as torneiras para terem certeza de que o misturador funcionava.

Até que ponto as águas de Paris se misturaram às do Serro ainda não tenho muita clareza. Acho que isso ainda está em processo de decantação. Só espero recuperar a pureza das águas de minha terra.

Sei que a notícia correu e cheguei a ver outros quartos usando a mesma engenhoca

 

EXPRESSÃO CORPORAL

 

 

O Loucine tinha ido para Marrocos em visita a sua família. Já havia uns dois meses que não nos víamos. Encontrei-o por acaso no Quartie Latin. Ao vê-lo, contive meu ímpeto de abraçá-lo e apenas lhe estendi a mão. É que, da outra vez que ficamos muito tempo sem nos ver, fui abraçá-lo e senti o seu sem jeito, numa reação de esquiva. Diante da minha gozeira, ele se explicou. Não se usa abraçar em Marrocos como cumprimento, pois o abraço é um gesto de sensualidade. Só que o Loucine não largava minha mão. E eu, todo sem jeito, achando que todo mundo já estava olhando pra gente. Sabia que não era um troco de sua parte. Era comum vê-los andando de mãos dadas, homem com homem. Para eles, esse gesto não passava de prova de amizade e de intimidade. Talvez era isso que o Loucine queria me dizer naquele momento: nós éramos amigos íntimos. Mas tal como o abraço era para ele, o mãos dadas era para mim. E eu fui, despistadamente, desvencilhando-me de sua mão. E já estava vermelho que nem um peru.

Refeito do mal-estar, perguntei-lhe para onde estava indo. Coincidentemente, ele também estava indo para Vincennes assistir à defesa da tese mais badalada do momento. Pra tudo quanto é lado nas dependências da universidade havia um cartaz convidando para tal defesa.

Essa acontecia no maior anfiteatro da  universidade, que estava apinhado de gente. Seu tema era o valor pedagógico da terra. A autora era uma parisiense que, calorosamente, defendia a importância do contato com a terra no desenvolvimento afetivo e intelectual da criança. No que eu a escutava, revia minha infância onde tinha aprendido tudo aquilo através da vivência. Por achar aquilo tão natural, jamais me imaginaria escrevendo uma monografia como aquela. Mas, logo, logo, entendi o porquê. A certa altura, a autora confessou que só foi ter contato direto com a terra aos vinte e poucos anos. E esse contato foi tão revolucionário na sua relação consigo e com o mundo que ela se sentiu no dever de sistematizá-lo e socializá-lo.

Além da defesa calorosa da autora, o que mais me impressionava era o tamanho e a atenção da platéia. Como sentia que não tinha muito a aprender ali, chamei Lucine para tomarmos um café. Suas impressões coincidiam com as minhas. Comentamos como o artificialismo do progresso motiva a produção de conhecimentos inúteis. E como esse mesmo artificialismo é sujeito de muita insegurança pessoal. Naquele momento, das várias disciplinas ofertadas pelo Departamento de Ciência da Educação, cerca de 70% tinha a ver com expressão não verbal e principalmente com a chamada expressão corporal.

Foi aí que Loucine me contou o caso da peruana. Ela era conhecidíssima em Vincennes. Morena, dos cabelos longos, puxada a índia, sua beleza desfilava atraente pelos corredores da universidade, sempre protegida por um poncho quase tão bonito quanto ela. Também ela estava cursando uma dessas disciplinas de expressão corporal. Nesse dia, ela chegou atrasada à aula. No meio da sala, estava uma aluna totalmente  nua deitada sobre uma mesa. Ao seu redor, todos os alunos, também nus, escutavam atentos a preleção do professor que também estava nu. E a peruana chegou de roupa e de roupa ficou. Aquilo começou a incomodar o pessoal. Não sei se pela curiosidade de ver aquela beleza despida, um dos alunos se achegou aos seus ouvidos, dizendo-lhe para tirar a roupa. Ela simplesmente fez um não com a cabeça. Daí a pouco, um outro aluno fez nova tentativa, tendo a mesma resposta.

O professor não se conteve. Parou sua preleção, relembrou as normas de comportamento do grupo e que  naquela aula era para todos ficarem nus, ressaltando a necessidade de a  peruana tirar a roupa. Ela disse que não ia tirar.

_ Por que? perguntou o professor.

_ Porque não estou com vontade.

_ Donde você é?

_ Do Peru.

_ Ah! Agora estou entendendo. País subdesenvolvido. Econômica e culturalmente. Deve ser por isso que você não tem coragem de tirar a roupa. Ou você se despe ou se retira.

E a peruana, calcada na solidez das construções incas, retrucou com seu francês espanholado:

_ Ô seu miserável! Há quinhentos anos vivíamos a inocência da nudez. Vocês foram lá, destruíram nossas civilizações e nos impuseram a roupa. Agora estão descobrindo o valor da nudez e querem me obrigar a tirar a roupa. Porque prezo muito a liberdade, não vou me despir e nem vou sair da sala. Vamos ver quem me tira!

E os trabalhos tiveram continuidade sem contar com a nudez de corpo da peruana,  agora, porém, sob a inspiração de sua nudez de alma.

 

SÍNDROME DA LIBERAÇÃO SEXUAL

 

 

A Clodine estava com  seus l8 anos bem vistosos. Parisiense, de classe média, levava uma vida de inspiração hippie. Seus trocados, ela os conseguia tocando violão nas estações de metrô. Para provar que era livre, já há algum tempo não morava com seus pais, apesar de com eles contar nas horas de aperto. Feminista de carteirinha, dizia-se sexualmente liberada por completo. Mas estava sempre com um namorado diferente.

Nos feriados da Páscoa, minha esposa viajou para o sul da França em visita a seus familiares e eu fiquei sozinho em Paris. Não sei se a Clodine sabia disso. Só sei que ela apareceu no meu apartamento. Um cafezinho aqui, um cigarrinho ali, conversa vai, conversa  vem e em um nem sei que nem pra que, ela soltou que estava ali para transar comigo.

Por conhecê-la, confesso que não me assustei. Mas fiquei espantado com a sem-cerimônia daquela cantada. Além de não ser comum naquela época mulher cantar homem, a forma como ela se expressou me cheirava uma percepção muito mecânica do sexo. E foi por aí que eu dei continuidade ao assunto. Perguntei-lhe o que era para ela uma relação sexual, no que ela respondeu de pronto: _ “ C’est le mec qui arrive et saute sur moi.” ( É o cara que chega e salta sobre mim”).

A partir de sua resposta, encetamos uma conversação, no meu entendimento muito substantiva e profunda, que nos fez perder a noção da hora. Morando longe, ela teve que sair correndo para não perder a última condução. Em nossa conversa, tentei, de uma forma leve, mostrar-lhe que a visão e a vivência que ela tinha de sexo era completamente diferente da minha. Que uma vivência sexual só é gratificante na medida em que ambos os parceiros se sentem sujeitos. Que a postura da mulher apenas como objeto, além de não ser realizante para o homem, certamente é também frustrante para a mulher. Só com a busca de superação desse modelo é que se pode caminhar no sentido de uma verdadeira libertação, tanto feminina quanto masculina. E que, portanto, a freqüente troca de parceiros não significa a verdadeira liberdade sexual. Muito antes pelo contrário, é uma forma de as pessoas não enfrentarem suas questões mais profundas.

Pelo ar com que a Clodine saiu lá de casa, apesar da correria, acreditei que ela tinha ficado muito satisfeita com nosso papo. Aliás, ela afirmou isso para mim com todas as letras. Chegou  a dizer que nunca tinha aprendido tanto sobre o assunto e até formulou propósito de mudar de vida.

Qual não foi meu espanto quando, daí a uns dois dias, recebo a notícia de que, por causa do nosso papo, ela caíra doente de cama e junto, um recado de que ela não queria mais me ver nem pintado de ouro. Através do mesmo mensageiro, respondi que iria visitá-la  pois, na minha terra, a gente visita os amigos quando adoecem.

Nessa mesma noite, comprei uma lembrancinha e fui visitar a Clodine. Talvez porque ela já tivesse recebido o meu recado, o ambiente terminou não ficando muito pesado. Um pouco sem jeito, tentei mostrar-lhe que jamais tive a intenção de machucá-la. Muito menos de censurá-la. Só que aquela era a minha visão e eu não podia trair a mim mesmo.

Ao despedir-me, pareceu-me que já tínhamos voltado às boas. Cheguei a sentir-lhe nos lábios um sorriso sincero e até meigo. Vim a saber posteriormente que minha visita lhe fizera muito bem. No outro dia ela já estava de pé. Mas nunca mais a vi. Desapareceu do circuito.

 

ANTÍTESE

 

O Oswaldinho já estava na França há quase dois anos. Como tomasse suas refeições nos restaurantes da cidade universitária, foi por aí que viemos a nos conhecer. Um conhecimento superficial, alimentado por conversas breves e ocasionais, por observações fortuitas e até mesmo por algumas piadinhas. O que de mais substantivo eu sabia a seu respeito é que ele ali estava não para estudar, nem para trabalhar, muito menos com status de exilado por opção ou coação. Conforme suas próprias palavras, ele ali estava para curtir e para se encontrar.

Certo dia, ao subir as escadarias do restaurante central, vejo o Oswaldinho sentado no canto do alpendre, meio acabrunhado e com um ar choroso. Aproximei-me , perguntando-lhe o que estava acontecendo, ao que  indagou se eu estava com tempo porque precisava desabafar. Já se cansara da vida que estava levando, achava que já tinha se encontrado, mas tinha medo de voltar para o Brasil e não conseguir se readaptar. Quis entender um pouco mais do seu medo e descobri que ele tinha uma questão mal resolvida com o pai. Mostrei-lhe que esse era mais um motivo de ele voltar logo para o Brasil, que  ele só teria certeza de sua libertação e de seu encontro consigo mesmo quando conseguisse encarar o seu pai de frente.

Nosso papo durou bastante, o suficiente para eu perder o horário do almoço . Certamente houve vários outros temas sobre os quais a gente conversou e dos quais nem me lembro mais. Sei apenas que, daí a alguns dias, fui acompanhá-lo à estação em sua volta ao Brasil. No trajeto, mais uma vez me criticou por estar levando muito a sério o trabalho na universidade. E foi por isso que , quando o trem partia, ele me acenou com ar de deboche, gritando: “Boa tese para você, Fábio!” No que eu , de pronto, retruquei: “E boa antítese para você, Oswaldinho!”

Depois de uns seis meses, estando no Brasil para coletar dados para a minha monografia e numa correria danada porque tinha muitas coisas a fazer em poucos dias, recebo um bilhete do Oswaldinho. Nele, me dizia de sua necessidade premente de nos vermos. No mesmo dia, cancelei um compromisso que teria à noite e nos encontramos num boteco, lá pelas bandas da Serra.

Só de vê-lo, saquei que a coisa estava preta. O rapaz estava verazmente mal. Começou criticando a realidade brasileira de então. A ditadura, a censura, a pasmaceira cultural e a sua conseqüente dificuldade de se readaptar. Estava decidido a novamente deixar o Brasil. E era sobre isso que queria conversar comigo. Objetivamente, estava pensando em se envolver com algum dos projetos de ensino da língua portuguesa em uma das recém-libertadas colônias de Portugal _  ou Angola, ou Moçambique ou Cabo Verde. O ambiente para ele aqui estava sufocante. Precisava respirar. E depois de um tanto de rodeio, confessou-me que há alguns dias havia até mesmo tentado suicídio. Sua sorte ou azar é que alguém o encontrara a tempo de acudi-lo. Ficara no hospital por uns três dias e, ao sair, tomou a resolução de mais uma vez deixar o país.

Desde que o Oswaldinho começou a desabafar, uma observação martelava na minha cabeça. Mas eu não tinha coragem de externá-la. Punha-me em seu lugar e, se alguém me dissesse aquilo, levaria no mínimo um soco. Mas, quanto mais ele falava, mais essa observação se avolumava, a ponto de, a partir de um determinado momento, eu já nem mais prestar atenção a sua fala. E foi ao constatar essa minha ausência atenta que resolvi soltar o verbo.

Por precaução, levantei-me e já um pouco afastado da mesa lhe disse: “Oswaldinho, você pode ir para Angola, Moçambique, Cabo Verde e até para a Conchinchina. O que acho é que você tem que fazer o que o seu coração quer. Só que acho também que você ainda não aprendeu a escutar seu coração. Afinal de contas, você é um rapaz que já tem uns vinte e cinco anos e até hoje tem medo de seu pai. Enquanto não encará-lo como homem, você estará fugindo. E esse seu negócio de deixar mais uma vez o Brasil me cheira a outra fuga. Seja lá onde estiver você nunca se sentirá livre.”

Num relance, o Oswaldinho se levantou, abraçou-me e começou a chorar. E entre  soluços dizia que eu era a primeira pessoa que o entendia. Aos pouquinhos e meio sem jeito, fui-me desvencilhando daquele abraço porque já não estava entendendo mais nada. Afinal, esperava uma reação agressiva de sua parte.

Novamente assentados, rimos um tanto  do meu receio em lhe dizer o que lhe havia dito e levantamos as perspectivas de trabalho que ele podia ter aqui, pois ele já estava seguro de que de fato seu negócio era aqui mesmo. Que  tinha que enfrentar sua realidade. E que, por incrível que pareça, tinha que vivenciar sua antítese.

Nunca mais o vi. Nem sei dizer se ele chegou à síntese.

 

UMA DOENÇA EXÓTICA

 

 

Tendo ficado por quarenta dias no Brasil, tomei um grande susto ao acordar no dia seguinte em que cheguei a Paris. No banheiro, ao urinar, notei uma pequena erupção na glande peniana. Meu susto aumentou quando, durante o dia, a erupção passou a coçar. Desconhecia os sintomas do cancro, mas esta foi a primeira hipótese que me veio. Apavorei.

Em frente à Cidade Universitária, ficava o Hospital Universitário. De tardinha já estava lá. Mas não pude ser atendido. Tinha que marcar a consulta. No outro dia, às 11 horas em ponto, voltei. Por precaução, fiz-me acompanhar da minha esposa. Corria o risco de não conseguir verbalizar a minha questão.

Fomos encaminhados para um  consultório onde ficamos esperando. Após uns 15 minutos, entra uma moça vestida de branco dos pés à cabeça e indaga qual era o problema. Esperava que minha esposa tomasse a iniciativa do esclarecimento. Não sei se por acanhamento, ela não o fez, gerando um ambiente de silêncio. Diante do incômodo do silêncio, achei mais fácil apelar para a expressão não verbal. Acreditando estar diante de uma médica, não pensei duas vezes: abri a barguilha e pus o dito cujo para fora. Para o meu espanto, a médica deu meia volta e saiu correndo. É que ela não era médica, o que depois vim a saber. Era apenas uma enfermeira que tinha vindo fazer minha ficha para encaminhamento à consulta.

Refeito o mal-estar causado pela minha iniciativa não verbal, finalmente me vejo diante do médico. Não sei se ele já sabia do acontecido. Só sei que de cara pediu-me para despir-me. Ao ver a erupção, fez um ar de pensativo e disse não estar identificando aquele sintoma. E que, em função disso, iria encaminhar-me para um hospital de doenças exóticas. Explicou que, em Paris sendo uma cidade cosmopolita, apareciam doentes com os sintomas os mais diversos, pois tinha gente do mundo inteiro. E nesse hospital havia médicos especializados no diagnóstico de doenças incomuns na França.

Em questão de segundos, um filme rodou na minha cabeça. Vi-me no meio de africanos, asiáticos, americanos, todos portadores de doenças as mais diferentes, às vezes até contagiosas. E eu já estava desconfiando do que devia ser meu problema. Lembrava-me de que, ainda criança, cheguei a observar papai passando um remédio fedorento no corpo porque estava com sarna. E, naquele momento, já sentia sinais de que as erupções ameaçavam se espalhar por outras partes do meu corpo.

Enquanto eu viajava, o médico já estava preenchendo a ficha de encaminhamento. Ao me entregá-la, disse que o próprio hospital me transportaria para o hospital de doenças exóticas. Com receio de não saber verbalizar minha intenção, pedi à minha mulher que lhe dissesse que eu tinha um compromisso inadiável e que voltaria no outro dia cedo para ser hospitalizado. Um pouco relutante, o médico aquiesceu e eu casquei fora.

A hipótese da sarna crescia na minha percepção. De fato, já sentia coceira em outras partes do corpo. E o meu grande medo inicial _ a possibilidade de um cancro _ já tinha sido descartado. A questão agora era descobrir em Paris um médico  brasileiro, mas não podia ser um brasileiro qualquer. Tinha que ter vivência médica do interior do Brasil e nem podia ser muito jovem. Como descobrir alguém como esse naquele mundão de meu Deus?

A minha estratégia foi ligar para as faculdades de medicina e procurar saber se entre os alunos de pós-graduação havia algum brasileiro. De posse de três respostas positivas, comecei minha peregrinação pelas universidades de Paris. Mas depois de tanto susto, a sorte se aliou a mim. Na primeira escola em que cheguei, ao procurar por um brasileiro que estava fazendo pós-graduação, tive a grata satisfação de me deparar com um médico de meia idade, que clinicava no interior do Ceará, na cidade de Quixadá. E, para completar, seu nome era Firmino Brasileiro da Silva.

Sentindo-me em casa e podendo rasgar o verbo, rapidinho a solução do meu problema estava encaminhada. De fato, era sarna e o remédio era mesmo aquele fedorento, de minha lembrança, cujo princípio ativo é o enxofre.

E aí o Dr. Firmino Brasileiro da Silva gentilmente me explicou que de fato o médico francês tinha razão. Que se eu não procurasse um médico brasileiro, fatalmente seria internado num hospital de doenças exóticas. Que jamais um médico francês diagnosticaria a minha sarna. Lá ela se chama “gale”, produz os mesmos incômodos, tem a mesma terapêutica da sarna, mas sua aparência é diferente. Ao invés de as erupções serem arredondadas, elas são ovais.

Feliz da vida, passei na farmácia, comprei a loção à base de enxofre e, por mais alguns dias, curti minhas coceirinhas.

 

ÉRIKA

 

 

 

Depois de um ano na França, voltei ao Brasil para solucionar algumas questões pessoais e coletar dados para a minha monografia na universidade. Aproveitei essa viagem para resolver um problema que tinha constantemente. Estava sempre dependendo do favor de alguém  para datilografar meus textos. A solução estava na Érika, velha máquina portátil alemã que me acompanhava desde os quatorze anos. Além de tê-la adquirido de um velho amigo, foi nela que escrevi meu primeiro poema. Sua robustez dos anos 40 contrastava com a fragilidade das de plástico dos anos 80. Ela era uma sobrevivente inteira de alguns tombos. Sua capa em madeira lembra as velhas malas dos migrantes.

Deu-me um trabalhão danado transportá-la no avião, apesar de ser portátil. É que tive que levá-la como bagagem de mão. Depois dessa trabalheira toda, qual não foi meu desaponto quando, já em Paris, fui me servir dela. Seu carro estava emperrado. Minha primeira reação foi de indignação com quem eu a tinha deixado. Podia pelo menos ter-me alertado, coisa que certamente não fez porque o defeito resultara de erro no seu manuseio. No Brasil não teria sido difícil consertá-la.

Num relance, antevi-me de baixo para cima e a pé nas ruas de Paris carregando aquele trambolho. Mas catálogo existe. E suas páginas amarelas tiraram o amarelão do meu semblante.Olha lá, no meio de uma delas, bem destacada, a indicação de uma casa de representação da Érika. Um tanto aliviado por essa descoberta, lá cheguei com minha máquina em punho. Para minha surpresa, era uma grande loja e com instalações modernas. Na entrada, a amostra dos últimos lançamentos. E eu com sua avó a tiracolo. Encaminharam-me para a parte de assistência técnica. Quando chegou a minha vez, destampei a máquina em cima do balcão. Com a máquina, destampei também o meu verbo. Contei para a moça que atendia toda a história da máquina e o quanto eu era ligado nela. Ao me perguntar o que eu queria com aquilo, mostrei-lhe o defeito. Friamente ela respondeu que eles não podiam consertá-la.

_ Mas como, se ali era a representação da Érika?

_ É que a tecnologia já estava ultrapassada. Não havia mais peças de reposição e, mesmo se houvesse, o reparo ficaria mais caro do que o modelo novo. E, mesmo que eu pudesse pagar, eles não tinham técnico com capacidade de fazer o serviço.

Murcho e preocupado, refaço meu itinerário de volta. O que eu ia fazer?  Estava num momento na universidade em que precisaria de máquina todo dia. A essas alturas, o “amigo” com quem a tinha deixado já devia estar com as orelhas vermelhas. Como eu o xingava! Se o danado tivesse me alertado, no Brasil teria sido fácil consertá-la. Mas ali, naquele mundo de meu Deus, onde nem os representantes tinham aceito consertá-la, o que que eu ia fazer? Mas não há um dia como depois do outro. O que eu tinha era de pôr o meu faro popular para funcionar. E isso, de certa forma, já estava acontecendo. Afinal, meu francês já dava para o gasto e já me sentia em condições de levar um papo com gente do povo.

E foi num desses arroubos de povo que quis me distanciar um pouco dos restaurantes universitários e  me aproximar mais dos restaurantes populares. Foi em  Gentilly, cidade satélite com prefeito comunista, que encontrei um correspondente ao nosso cu sujo. Ali era povão mesmo. Cercado de fábricas, sua clientela era predominantemente de operários. Pela primeira vez, pude respirar um verdadeiro ar de povo. Até freguês dando tapa na bunda de garçonete eu vi. E sem  frescura na reação dela, nem desrespeito no gesto do freguês.

O único ponto negativo desse dia foi dado por aquele cara que na introdução de sua tese pedia desculpas ao povo francês pelo fato de ser brasileiro. Ele estava comigo. O bar estava superlotado. Quando a garçonete veio nos servir, ele pediu o cardápio. De imediato, cutuquei-o com o pé por debaixo da mesa. A garçonete respondeu-lhe dizendo que as opções estavam afixadas na entrada. Pomposamente, ele perguntou se tinha um tal prato, no que ela, de chofre e na lata, respondeu:

_ Meu senhor, isto aqui é um restaurante de operários. Todo dia temos três opções. Eu acho que o senhor está com o endereço errado. O que o senhor quer, vai encontrar lá no Maxime’s, no meio dos ricaços.

Ao perceber que meu companheiro queria insistir, dei-lhe um chute na canela e assumi a condução dos pedidos. Era uma comida deliciosa. E o ambiente, mais ainda. O melhor de tudo é que, ao sair, dei-me de cara com uma loja de máquinas de escrever. Por não estar bem  acompanhado de gente com sensibilidade popular, deixei para voltar ali outro dia. Mas algo me dizia que ali estava a solução para a minha Érika.

Não deu outra. Com ela a tiracolo, no outro dia cedinho rumei para lá. Já escaldado, não fui logo destampando-a nem contando sua história. Simplesmente perguntei-lhe se consertavam máquina, pois que pelas vitrines percebia-se que era uma loja de revenda. A Érika estava bem escondidinha junto aos meus pés, por detrás do balcão. O senhor que me atendia, francês típico, bochechas avermelhadas, com seus 70 anos, respondeu-me que dependia da máquina. Aí, resolvi abrir o jogo. Contei-lhe da minha decepção com os representantes da marca. Diante do meu sotaque, perguntou minha origem. Ao me saber brasileiro, abriu-se todo em sorrisos, externando seu encantamento com o Brasil e seu sonho de um dia conhecê-lo. E que a França era aquilo mesmo que eu estava vendo. Já não se conserta mais nada. O máximo que se faz é trocar peças. E nem sempre compensa. E essa era a sua frustração. De formação artesã, seu prazer era criar as coisas. E na linha de montagem em que havia se transformado a sociedade francesa, ninguém podia criar mais nada. Você era um autômato que retirava e encaixava peças. E esse era o mundo que nos esperava a todos nós, inclusive o Brasil.

_ Portanto, amigo, o seu negócio não é aqui. Volte para a sua terra e dê um jeito de lá não virar o que estamos vivendo aqui. A gente só se sente homem quando cria. E aqui ninguém tem condições de criar nada.

Apesar da satisfação com a conversa _ era a primeira vez que via tanta lucidez num francês _ eu estava na realidade era preocupado com minha máquina. E apesar de espichar o papo mais um pouco porque ele estava gostoso (já estávamos até nos chamando pelo prenome e o seu era Pierre), o que queria mesmo era saber se ele iria consertá-la. E quando finalmente pude expor-lhe minha inquietação, tive a seguinte resposta:

_ Como você viu, aqui é uma loja de revenda. Mas a gente conserta também. Só que na mesma lógica que você sacou lá nos representantes da Érika. E para isso nós somos cerca de trinta técnicos. (Imaginem o meu ar de decepção!) Mas você deu sorte! Eu fui com sua cara. Além do que você é brasileiro . E o mais importante é que sou o patrão. E como patrão, posso fazer algumas coisas de que gosto. E como gosto de desafios, vou consertar sua máquina. Essa peça não existe mais. Mas vou fazê-la.

Depois de 27 anos, escrevi esse texto na Érika.

 

O NÃO TEMA

 

O departamento era o de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII. A disciplina, teoria e prática da observação direta. A professora, uma alemã chamada Ruth Kohn.

Havia escolhido essa disciplina na expectativa de encontrar nela algum embasamento teórico para a minha monografia. Afinal, pretendia mostrar através dela a necessidade de se incorporar ao processo formal de ensino o aprendizado adquirido no dia-a-dia do trabalho. O meu objeto de estudo era a realidade dos alunos trabalhadores que, no Brasil, era (e acredito que ainda seja) bastante significativa já a partir do 1º grau.

O assunto de minha monografia despertava muito interesse entre os franceses porque essa era uma realidade  praticamente desconhecida deles. E foi tal interesse que me obrigou a abrir a matraca antes da hora. Nesse dia, a professora havia constituído pequenos grupos nos quais cada um devia relatar sua experiência em educação, a fim de que cada grupo chegasse a alguns pontos comuns. Quando chegou minha vez , tentei polidamente sair fora . Meu francês ainda estava péssimo para me exprimir , apesar de já conseguir acompanhar as conversações. Tentei argumentar com essa minha dificuldade, mas foi em vão. Persuadiram-me dizendo que iam ser compreensivos passando por cima das questões lingüísticas e se atendo ao conteúdo da minha fala. E eu acreditei.Além do mais, no fundo, estava doidinho para relatar a minha vivência na área.

E foi por aí que dei com meus burros n’água. Empolgado com a admiração dos ouvintes pela minha temática, destampei o verbo e fui atropelando a gramática  e o dicionário deles. Num desses tropeços que, acreditem, em pouco ou nada interferia na mensagem, levei uma reprimenda que me calou a boca.

Sem graça e decepcionado com a reprimenda e a gozeira, não quis mais falar, apesar de continuarem batendo na tecla de que iam procurar serem compreensivos. Na realidade , eu era um burro. Já havia vivido situações parecidas. Estava mais do que na hora de eu ter a clareza do quanto eles são verbais e o quanto a comunicação verbal é importante para eles. Para que seja respeitado, você tem que dizer a coisa certa,  da forma certa, na hora certa. E apesar de saber disso , mais uma vez havia caído na armadilha do “espírito de compreensão” em relação aos estrangeiros. Mas  seria a última. E como eles eram muito fracos na comunicação não verbal, era por aí que eu tinha que navegar. E era por aí que eu daria o troco. O negócio era esperar a oportunidade. Passado algum tempo, chegou a minha vez.

Não é do meu costume chegar atrasado aos compromissos. Nesse dia porém, não me lembra o que aconteceu, quando cheguei a aula já havia começado. E, para  minha surpresa, a porta estava fechada, situação muito pouco comum em Paris VIII onde vigorava a lei da liberdade do ir  e vir. Mais espantado fiquei ao saber que os cinco alunos que ali estavam foram impedidos pela professora de entrar em sala. Indaguei o que estava acontecendo. Responderam-me que ela já havia explicado o motivo: iríamos experimentar uma nova técnica pedagógica. De fato. Em pouco tempo ela veio até nós e explicou como seria. Nós, os atrasados, formaríamos o grupo de verificação ou discussão. Os que já estavam na sala, o grupo de observação. Pediu-nos que, antes de entrarmos, escolhêssemos um tema, em torno do qual discutiríamos durante vinte minutos a fim de que o outro grupo, a partir de nossa  discussão, detectasse o tal tema. Deu-nos alguns minutos e entrou para a  sala.

Eu estava com a faca e o queijo na mão. A essa altura já éramos uns sete atrasados. Todos estrangeiros, exceto um. Depois de alguns temas sugeridos, propus que o nosso tema fosse o não tema. Argumentei que dessa forma enriqueceríamos o processo que iríamos vivenciar, tornando mais difícil a tarefa do grupo de observação. Ao mesmo tempo, ficaríamos mais livres para falarmos o que quiséssemos , e até nem falar, como seria o meu caso. E disso eu fazia questão.

Entramos para a sala onde já estavam preparadas as nossas cadeiras no centro, estando os demais alunos assentados ao redor. Alguém do nosso grupo iniciou o papo falando sobre a importância do clima na formação cultural de um povo. Depois de umas duas intervenções, um outro colocou a questão do livro didático no aprendizado escolar. Após algumas observações sobre essa questão, o outro entrou  com o problema da guerra no Vietnã. E por aí fomos viajando por diversos assuntos e eu, estrategicamente mudo. Mudo e assuntando.

A turma dos observadores já não sabia mais o que fazer. Seus apetrechos não davam conta do absurdo que presenciavam. Seus cadernos de anotações multicoloridos careciam de cor para tanta asneira. Vi nego trocando de caneta sem parar por não saber como encaixar as constantes e abruptas mudanças na nossa conversação. O espanto e a perplexidade  foram contaminando toda aquela inteligência verbal. Os gestos e os olhares denunciavam frustração e até uma certa indignação.

Findos os nossos vinte minutos, inverteram-se as posições. Agora nós, o grupo de observação, nos deleitávamos com a desorientação do outro grupo. Tanto que a professora, fugindo do script, teve que intervir para que a discussão assumisse algum sentido. A sua primeira observação foi afirmar que na realidade não havíamos escolhido um tema e que a nossa discussão não tinha nexo.

A minha expectativa era que o francês do nosso grupo revidasse. Entretanto, na sua fala, tendeu a concordar com a professora, no que eu não me contive. Pedi a palavra e esclareci, argumentando que a nossa discussão teve muito nexo sim. E que esse nexo resultava de uma opção que tínhamos feito por não termos um tema definido. E, em sendo assim, o nexo era o não nexo, pois o tema era o não tema.

Não me perguntem como consegui falar isso. Só sei que consegui dar o recado. A professora ficou vermelhinha que nem um peru. Os alunos me fuzilavam com os olhos de espanto. Essa peraltice dialética rendeu por muito tempo. Abaixada a poeira daquele dia, por várias vezes a professora se referiu a essa experiência como um exemplo de quebra das nossas estruturas mentais rígidas. Afinal, a disciplina se chamava teoria e prática da observação direta.

 

SUTILEZAS AUTORITÁRIAS

 

Por ser de origem nobre, o Bernard havia cursado uma “grand ecole”. Isso mesmo. Eu achava que a nobreza havia acabado a partir da Revolução Francesa. Mas não foi o que constatei durante o tempo em que lá estive. As pessoas de origem nobre faziam questão de enfatizar sua característica. E o sinal mais visível disso era a presença da preposição de antes do nome de família. Comentava-se até que o d’Estain do Presidente Giscard não era verdadeiro, pois fora comprado. Além disso, nobre que se prezasse não estudava em universidade pública e sim numa “grand ecole”, pois essas tinham o papel de preparar os futuros executivos da  máquina governamental.

O Bernard não sei de que era formado em engenharia. Já havia trabalhado em algumas ex-colônias francesas. Era um convicto militante de esquerda e, como tal, vivia criticando o governo. Mas o que mais nos aproximou foi o fato de ele viver com uma brasileira que, além de ser brasileira, era muito bonita e simpática.

A gente se encontrava freqüentemente, pois eles moravam em um bairro limítrofe à cidade universitária, em uma pequena casa, porém muito aconchegante. Tinha até um quintalzinho. E era nele que o Bernard vivia fazendo suas bricolagens. Nesse dia em que fui entregar ao Bernard uma ferramenta que me havia emprestado, ele me chamou para participarmos de uma manifestação anti-tortura liderada por Sartre. À noite, fomos para a tal manifestação _ ele, eu e as respectivas. Estava doido para conhecer em pessoa aquela monstruosidade sagrada do existencialismo. Só que ao vê-lo, mais uma vez confirmei que tamanho não é documento. Era um velhinho de cabeça branca, pequeno e franzino. Mais uma vez, porém, estava acima da esquerda de seu tempo. A esquerda que ali estava – e eu acho que todo mundo ali era de esquerda – tinha a intenção de denunciar a realidade de tortura por que passavam alguns países do terceiro mundo, em especial o Brasil que naquele momento estava sempre nas páginas dos jornais.

No seu discurso, Sartre não deixou de mencionar as atrocidades do terceiro mundo. Entretanto, concentrou-se em alertar os presentes sobre a realidade de tortura que também se fazia presente na Europa. Citou como exemplo o caso da Inglaterra. Só que lá a tortura se beneficiava do pseudo progresso civilizatório. Não era a barbárie nem a crueza do pau-de-arara e do choque elétrico. Mas era tão refinada e aparentemente inofensiva que condenava suas vítimas a perder a noção da realidade. Os presos políticos viviam em acomodações cujas instalações lembravam um hotel de algumas estrelas. Chegavam a cheirar luxo. Os presos eram bem alimentados. Entretanto, tudo era branco, ausente de qualquer cor e com dispositivos para impedir a entrada de estímulos externos. Com isso, afirmava Sartre a partir de depoimentos de pessoas que haviam sofrido esse processo que, ao longo do tempo, a vítima vai perdendo as referências de cor e de som, conseqüentemente perdendo a noção de tempo e de espaço. Fica literalmente louca. E ainda não se sabia se com o tempo ela voltaria a recuperar a lucidez.

Apesar do horror denunciado por Sartre, sua leitura reforçou a percepção que eu vinha tendo face à realidade européia. É que, mesmo admitindo a existência e condenando os horrores impetrados pela ditadura brasileira, estava também e na medida do possível chamando a atenção dos franceses para as contradições do formalismo de sua democracia. Isso para mim se tornou logo evidente ao constatar a opressão sócio-cultural perpetrada pelo sistema de ensino oficial. Constatação que se reforçou  ao assistir a algumas aulas do Bourdieu e principalmente após a leitura de seu livro “ La reproduction”. Não é que tenha gostado do livro. Além de ele complicar o simples, sugere uma situação de beco sem saída. Na época eu o critiquei bastante por isso. Hoje, porém, tendo a concordar mais com sua tese principal. Para que o homem possa avançar social e culturalmente tem-se que mudar radicalmente o sistema de ensino. Não só na sua organização, como nos seus métodos, mas  principalmente nos seus conteúdos. Conteúdos que até hoje refletem apenas os valores e o saber da burguesia, não permitindo a sobrevivência e o desenvolvimento dos valores e conhecimentos ligados à sabedoria popular.

Se o sistema de ensino não propiciava o cultivo da liberdade, da igualdade e muito menos da fraternidade, minha percepção crítica da sociedade francesa mais se aguçou quando fiquei sabendo da história da Maspero. Tradicional e principal editora de esquerda, a notícia que corria é que ela estava indo à falência e que sua falência se devia à censura. Censura na França? No Brasil ela campeava solta e escancarada, mas na França, berço da liberdade de expressão? E aí me explicaram. Toda vez que a Maspero lançava uma obra com análises e críticas de uma realidade do momento e que, portanto, poderia se tornar um best-seller, algum órgão do governo entrava com uma liminar na Justiça suspendendo sua divulgação. Claro que a Maspero entrava com algum recurso que ensejava um contra-recurso por parte do governo. Tudo dentro dos cânones e da lei e, no final,  como se espera de um país que cultua a liberdade, a  Maspero ganhava. Suas vitórias porém eram de pirro. Como as marchas e contra-marchas na Justiça são lentas, quando chegava a ter o veredicto favorável, o tempo já havia passado e a obra em questão  já estava desatualizada. E aquilo que prenunciava ser um estouro editorial se transformava num fiasco. Mas a Justiça fora feita. O governo jamais promoveria a censura, a Maspero sempre gozou de liberdade para publicar o que quisesse. Mas faliu.

Quem acabava de me confirmar essa história era o  Bernard. É que estávamos num boteco comentando a denúncia que acabáramos de escutar do Sartre. E, enquanto isso, nossas respectivas estavam se aproveitando de um telefone na pracinha. E essa era a onda de então em Paris. Vira e mexe corria  o boato de um telefone público que alguém havia estragado e que estava falando para o exterior. A estrangeirada acorria e dava até filas. Esse ainda era notícia fresca. E nossas esposas estavam se esbaldando nas suas fofocas com o Brasil. Diante da situação, coloquei a seguinte questão : _ Bernard, elas estão lá deitando e rolando com o telefone. Claro que isso tem um custo. Quem arca com esse gasto? E o Bernard, um convicto militante de esquerda, com o seu chopp em riste, nem pestanejou: _ “ Nous, le governnement français”.

 

EXÍLIO DO REAL

 

Estamos em 1974. O Leandro já estava em Paris há algum  tempo. Ele era um daqueles que conseguira se exilar em conseqüência do seqüestro de algum embaixador cuja identidade me foge. Eu não o conhecia pessoalmente. Conhecia  bastante era Clélia, sua companheira, que fora minha colega de faculdade. E é por isso que eu estava ali visitando-os. Além do mais, a Clélia havia nos ajudado muito na nossa ida para a França. O que me assustou é que logo que fomos apresentados  o Leandro me puxou para um canto e, com a mão nos meus ombros, confidenciou-me em tom revolucionário: _Estou muito satisfeito de vocês estarem aqui. Conto com vocês para invadir o Brasil.

Confesso que não soube como reagir: se ria, se questionava ou se concordava. Simplesmente fiz de conta que não entendi e o fui puxando para o meio da sala onde estavam as outras pessoas. E enquanto o papo, agora comum, se desenrolava entre os presentes, aquele gesto do Leandro me fez voltar aos tempos do Brasil de 69. Algo parecido havia acontecido.

A repressão corria solta. Qualquer palavra ou gesto político era proibido. Muita gente havia caído na clandestinidade, criando organizações para lutar contra a ditadura. Certo dia, fui procurado em minha casa pelo Saulo que pertencia à mesma organização do Leandro. Esse Saulo já havia tentado me envolver marcando alguns encontros furtivos. Lembro-me de que um deles foi numa noite, perto do Minas Tênis. Bastou mais um encontro e eu acreditava que eles haviam desistido de mim.

Mas não. nesse dia, ele estava ali para me convidar a participar da montagem de um serviço de contra-espionagem. Seu argumento era que a ditadura dispunha de um bom serviço de inteligência que lhe possibilitava se antecipar a todas as iniciativas da organização. De chofre concordei com a sua tese, acrescentando que isso já devia ter sido feito há mais tempo. Mas perguntei-lhe porque estava me procurando, ao que me respondeu que eu tinha sido a pessoa escolhida para iniciar a montagem.

_ Por que eu?

_ Além  de você ter ficha limpa na polícia, de ser da nossa confiança, você tem um cargo de agente de segurança na Assembléia e isso facilita tudo.

Expliquei-lhe  que tal cargo, na realidade, deveria ser chamado de porteiro. Que eu não entendia nada de segurança. Mas, ao mesmo tempo, pedi-lhe detalhes do plano.

_ Você vai para Brasília e se infiltra no SNI.

_ E qual o contato que tenho em Brasília?

_ Não precisa de contato. Você chega lá e se infiltra.

_ Mas, Saulo, aqui eu tenho um trabalho, tenho minha família. Afinal, tenho o meu sustento assegurado. Como vou sobreviver em Brasília?

_ Você chega lá e arruma emprego.

_ E pelo menos para isso vocês têm lá algum contato para me ajudar?

_ Ah! Que isso, Fábio! Você chega lá e se vira!

_ Saulo, você não quer ir pra puta que o pariu não? Você acha que sou bucha de canhão? Admiro e respeito os movimentos que estão resistindo contra a ditadura. Mas nenhum fruto será bom se não houver um mínimo de respeito à vida humana. Afinal, isso é uma guerra. E com guerra não se brinca.

Apesar de o Saulo ter prometido que ia amadurecer mais o plano e passar-me coordenadas mais precisas, ele nunca mais apareceu. E agora estava eu ali, acreditando visitar amigos e sendo convidado para invadir o Brasil.

Mais tarde tive oportunidade de comentar tudo isso com o Jairo. Também ele fizera parte da mesma organização. Mas já estava desiludido com o movimento. E o que mais me assustou é que ele já estava até renegando sua condição de brasileiro. E isso me fez espichar o nosso papo.

Estávamos em Vincenne. Convidei-o para uma cerveja com o objetivo de demovê-lo daquela idéia boba de se naturalizar francês. E a nossa conversa rendeu. Entre argumentos e contra-argumentos, já estávamos filosofando sobre a origem da vida. E foi por aí que, vendo passar um cachorro perto de nós, eu lhe disse:

_Por exemplo, Jairo, esse cachorro aqui…

Ele me cortou o raciocínio dizendo:

_ E quem disse que esse cachorro existe?

Aí eu desisti do papo, dizendo:

_ Se você duvida até da existência desse cachorro que a gente está vendo, conseqüentemente tem que duvidar da minha existência e por uma questão lógica, até da sua. Portanto, se nós não existimos, o que estamos fazendo aqui?

Tchau e benção. Nunca mais o vi. Soube apenas que de fato ele havia se naturalizado. No que fez muito bem. Melhor do que aqueles que ficam aqui curtindo a nostalgia de ter nascido lá. E melhor ainda do que muitos que sonham transformar aqui em lá. E mais do que isso, até lutam nesse sentido.